quinta-feira, 12 de março de 2015

Misofonia


"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. 
Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você."
Friedrich Nietzsche

Soquei o espelho do banheiro, mas as dezenas de fragmentos em que ele se partira ainda refletiam os olhos de raposa velha que me encaravam cheios de culpa. Era ainda mais assustador que antes. Parecia (e também me sentia) cada vez mais doente. Quem dera fossem apenas delírios da minha mente – sentia que estava ficando louco; embora, talvez, a loucura fosse só uma desculpa para minha covardia.
Peguei o celular para ver se tinha alguma novidade: um recado, uma mensagem de texto, uma ligação, mas não havia nada! Até minha agenda de contatos não existia mais. Não havia nada de diferente, apenas espaços em branco. Havia espaços em branco em todos os lugares.
Olhei para os lados procurando uma saída, mas as paredes pareciam que iam me engolir a qualquer instante. A casa estava um mausoléu. O banheiro tinha o cheiro forte de mijo; a sala tinha apenas uma TV, um sofá velho e, ao lado, uma mesinha com um abajur em cima; não havia varanda, só uma janela que dava para uma rua pacata e sem saída;  a cozinha tinha muitos pratos sujos,  tanto em cima da pia quanto da pequena mesa de apenas duas cadeiras; o quarto – só havia um em toda a casa – tinha um armário pequeno e uma cama de casal onde jazia, ensanguentado, o corpo dela.
Não fosse a culpa cada vez crescente, não podia imaginar felicidade maior. A melhor parte de tudo aquilo era o silêncio. Conseguia escutar o vento entrando pela janela e socando as paredes. Conseguia escutar minha própria respiração. Conseguia distinguir qualquer ruído que aparecesse naquela rua. Deixei escapar uma risada insana de deleite. Mas a culpa martelava sobre a minha mente de assassino covarde.
Voltei para o quarto e me ajoelhei ao lado da cama, observando-a com os olhos vidrados. Ela continuava tão bonita quanto no dia em que a conheci. Não perguntara de onde ela tinha chegado tão tarde naquele dia, não dera tempo. Mas isso não fazia diferença agora, pois eu não tinha interesse em saber.
Nunca gostara de ruídos muito altos, mas sei que isso não é desculpa pra ter desenvolvido com o tempo uma estranha aversão ao som de sua voz. Não conseguia mais suportar nem quando ela dizia que me amava. Então planejei que daquele dia não passaria. Enquanto transávamos naquela noite, o som de seus gemidos cada vez mais altos ativara o demônio da perversidade dentro de mim, então perfurei sua garganta com uma faca que eu já tinha cuidadosamente preparado pra ocasião. Ela deu seu ultimo suspiro enquanto eu gozava e tornava a me vestir para  me deitar ao seu lado, sonolento.
Agora eu me encontrava ali, ao lado da mulher mais silenciosa do mundo, tomado por uma culpa que nunca me deixaria viver em paz e indignamente desejando possuir o seu corpo pela última vez antes de me suicidar. Encostei meu corpo tépido sobre seu cadáver gélido e tomei-a nos braços, sentindo a excitação percorrer a minha corrente sanguínea e enrijecer o pênis que agora tocava-a por sobre a roupa. Foi aí que o demônio da perversidade mais uma vez me possuíra pra saciar o meu desejo miserável de prazer duplo  de silêncio e de gozo. Nunca me sentira tão pleno em toda a minha vida. Era como se tivesse acabado de encenar o último ato de Romeu e Julieta, entregue ao prazer onírico da carne e da alma.
Mas a culpa voltara a martelar a minha mente de assassino covarde. Sabia que era questão de tempo para que me descobrissem e causassem o maior alarde da história da cidade. Eu não suportaria mais um ruído sequer. Fui à cozinha, peguei o frasco de veneno para ratos que guardava embaixo da pia e voltei para o quarto. Deitei-me ao lado de seu cadáver novamente, tomado pela culpa e por uma nova corrente de excitação que percorria cada centímetro do meu corpo nu. Então entornei o frasco goela abaixo, esperando o sono dos justos, desta vez eterno e silencioso.


Escrito por Thais Lima, durante uma crise de amigdalite.
Nota: 1 - A expressão "demônio da perversidade" é uma alusão a um conto de mesmo nome de Edgar Allan Poe. 2 - A misofonia é um transtorno neurológico também conhecido como Síndrome de Sensibilidade Seletiva do Som. Consiste numa hipersensibilidade a sons específicos do cotidiano, levando a reações como irritação, raiva ou pânico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário